30.1.07

Notas musicais (ainda Bloc Party)

Não fossem os primeiros álbuns sempre tão grandiosamente inultrapassáveis, eu diria que desta vez o segundo me parece tão bom como o primeiro, não?

Notas musicais (Bloc Party)

O novo álbum de Bloc Party só sai lá para Janeiro ou Fevereiro. O novo álbum de Bloc Party é muito bom.

(uma das frases da passagem de ano)

Kreuzberg

por Bloc Party

there is a wall that runs right through me
just like the city, i will never be joined
what is this love? why can i never hold it?
did it really run out in the strangers' bedrooms?

i have decided
at twenty-five
something must change

saturday night in east berlin
we took the u-bahn to the east side gallery
i was sure i'd found love with this one lying with me
crying again in the old bahnhof

after sex
the bitter taste
been fooled again
the search continues

29.1.07

As portas de Berlim - Parte I

Oranienburger Tor

Foi no Tacheles que fizemos as pazes. Tínhamos discutido bastante nessa noite. Queria ir ao cinema, depois já não queria ir ao cinema. Queria uma cerveja, depois já não queria uma cerveja. Mandava para trás tudo o que pedia, chamava a empregada e marcava mais um ponto na lista de clientes não desejados. Eu bem lhe disse que não queria ir àquele bar, mas ele insistiu
- Eu convido-te
Não era pelo dinheiro, mas os homens às vezes gostam mesmo de passar por broncos. Encolhi os ombros e deixei-o pagar-me a entrada, a cerveja, as cervejas, o que mais houvesse, desde que me pudesse mostrar o seu cartão de crédito internacional. Sim, eu sei que não és nenhum pobretanas. Os homens às vezes gostam mesmo de ser broncos. Eu olhava pela janela enquanto ele falava primeiro disto, depois daquilo, depois voltava ao aqueloutro do início da conversa, deixando-me baralhada e sem vontade de responder a perguntas sem nexo. Quando começou a barafustar com a empregada que já nos tinha dito duas vezes que, se fizéssemos a gentileza, já passava da hora de fecho, eu
- Vamos embora
percebi que não ia aguentar muito mais tempo calada
- Por favor
que tudo o que os coreanos me tinham ensinado (a ser amável mesmo para os cabrões dos clientes que nos olhavam como se nos furassem a pele de tão transparentes que éramos, a ser superior a todos aqueles fachistas de merda que mediam a sua superioridade pelo tamanho da gorjeta que deixavam na mesa, a aprender a levar as coisas com a calma de quem não tem muito tempo para se chatear com o que não nos faz felizes, ignora, ignora, tu sabes que és melhor que esta gente que demora duas horas em frente ao espelho para terem o aspecto desleixado que tu tens quando sais da cama), que todos os exercícios de respiração zen praticados ao longo de um ano, do primeiro ano, do ano que é sempre o mais difícil, estavam prestes a desfazer-se no frio da noite, que estava em vias de perder a compostura, a paciência, a pose de gaja cool para quem tudo está bem, para quem todos os maneirismos daquele gajo não passavam de tiques nervosos de um homem que, perante alguém como eu, alguém que parece não estar ali, se esquece como é que se engata uma mulher e acaba por fazer tudo mal. Os homens às vezes são mesmo broncos.
Saí como um relâmpago, deixando-o com a cerveja a meio, desci o elevador, atravessei a praça, enfiei por uma ruela contrária à direcção que queria levar. Talvez (porque) esperasse que ele me seguisse, que quando, nos semáforos, olhasse para um lado e depois para o outro, ele estivesse ali e atravessasse a rua comigo e eu pudesse finalmente gritar
- Estúpido, que és um estúpido, fizeste tudo mal
e continuasse a discutir até à Friedrichstrasse, a andar-a-correr, a gesticular, a afastar os cabelos da cara com a fúria destinada a afastá-lo de mim, és um idiota, afinal de que te servem os 30 anos, tanta segurança, tanta pompa e no fim és igual a todos os putos que conheci até agora.
Quando passámos o rio, ele começou a deixar cair as palavras, os braços, a respirar fundo, a dar-me razão. Tentei não lhe ligar, descer depressa as escadas da estação de Oranienburger Tor e entrar nas portas escancaradas do metro quando
- Desculpa
ele me pegou na mão
- Desculpa
e eu ainda resisti
- Desculpa
e ele chamou-me aquele nome que não podia saber porque não falava a minha língua.

Fui com ele para o Tacheles. Ele bebeu uma cerveja e não discutiu com o empregado. Deixou-me escolher o lugar ao balcão e fez-me perguntas verdadeiras. Deixou-me fumar o maço todo e nunca mais mencionou a minha idade. Nem a dele. Fez isso tudo e fez-me começar finalmente a olhar para a mão dele a segurar a garrafa de cerveja (para que não tremesse), e para os lábios dele (que olhavam para dentro dos meus olhos), e para a outra mão a passar pela cabeça calva (quando me sentia a mexer-me no banco), e para os pêlos do peito que lhe saíam por fora da camisa (o segundo botão aberto para que nunca se esquecesse do macho que era), e num repente ele a dizer-me
- Du bist wunderschön!
És linda. Estás linda. Não cheguei a perceber. Disse-o na língua que não era de nenhum dos dois para me baralhar, para juntar dois verbos e esconder o significado real do que queria dizer, se eu era sempre linda, se estava linda apenas hoje (que não se repita!), eu ainda de faces ruborizadas, de espírito cansado, de sentidos trocados, queres-me, não te quero, não me queres, quero-te.
Nessa noite levou-me ao metro. Havia de me levar ao metro muitas noites seguidas, até que não aguentasse mais e entrasse comigo numa carruagem com cheiro a sexo. Mesmo que eu lhe dissesse
- Não preciso que me acompanhes
ele insistia em entregar-me sã e salva, salva dele, quem sabe, salva de mim, sei-o eu. Eu acabava por deixar porque gostava de o ouvir recitar poesias de espelho, tão perfeitas que lhe perdoava a falta de espontaneidade.

Andámos a salvar-nos um do outro durante quase um ano. Um dia, não aguentámos mais e deixámos de ensaiar. Quando discutimos pela segunda vez, com a mesma paixão da primeira, não fizemos as pazes no Tacheles. Passámos pela Oranienburger Tor e seguimos em frente.
(o terceiro botão aberto para que nunca me esqueça do macho que és)

28.1.07

We'll always have Paris


Vi hoje o Casablanca.
Eu nunca tinha visto o Casablanca.
Porque é que eu nunca tinha visto o Casablanca?

E eu ainda queria esperar por Fevereiro para isto.

27.1.07

Neve II


A neve chega para abrandar o ritmo da cidade, para nos lembrar de que há coisas que têm o seu tempo, a sua hora, mesmo que o relógio se atrase, mesmo que sejamos nós a atrasar o relógio. O tempo ainda marca a sua hora, por enquanto. Saio para a rua e de repente tudo fica mais lento. Como num filme em câmara lenta. Os meus pés que se arrastam, tentando não escorregar, os meus olhos que se fecham - entram-me flocos de neve para os olhos a toda a hora, neva como se chovesse, se estendermos a mão ficamos com ela molhada, os floquinhos que se derretem na palma da minha luva como se fossem migalhas de pão branco levadas pelo vento ou pelos pombos que afugento. Chu, chu.
Andar na neve é como andar na areia, mas com sapatos e muita roupa em cima. E o mar, que está tão longe. Se não fosse pelo mar, eu até nem me importava. Digo sempre que não gosto de neve, mas lá no fundo, no fundo, no fundo de mim aquecido pelo cachecol, quantas voltas, três, se o desdobrar chega ao chão, gosto de ver os carros parados cheios de neve, de chegar a casa e bater com os pés no chão para me desfazer do branco que me tinge as botas, de andar de S-Bahn e ver tudo branco, os telhados, os parapeitos, os carris, os ombros das pessoas. Gosto de chegar a casa, vestir as calças do pijama e ouvir música clássica, a compilação para os leigos que comprei por 3,99 o ano passado, aquilo-tudo-que-você-já-devia-conhecer-de-música-clássica-seu-inculto, não se chama assim, mas foi como me senti na caixa registadora, Bach, Brahms, Ravel, Mahler, beber chá, a saqueta sempre dentro da chávena, e sentir-me, realmente, incomensuravelmente, estupidamente invernal.

25.1.07

Neve

Finalmente.
Agora já pode começar a contagem decrescente (para a Primavera).

24.1.07

Sobre a posse

"Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar."

O Conto da Ilha Desconhecida, José Saramago

A Rainha


Escapo a 30 minutos de publicidade num café que está quase a fechar (só mais uma página, comecei hoje um novo livro, é já o quarto só este mês, fosse eu tão dedicada e apaixonada por tudo como sou pelos livros e era uma mulher feliz), ainda vou à casa-de-banho por altura do último anúncio à cerveja Krombacher, desta vez perco o anúncio dos gelados Magnum, I´M, e uma data de mulheres bonitas em poses ridículas, só a música é que se safa, e mesmo assim. Imediatamente a seguir, os moços que vendem gelados, vão-se lá embora, aqui ninguém quer comer gelados, ou ainda não repararam no frio que faz lá fora, usei hoje luvas pela primeira vez este ano, é um frio que encarquilha a pele e faz doer os pulmões, ou será do tabaco, não, que hoje já comecei a fumar menos, sim, foi só hoje, mas há sempre um dia que é o primeiro de muitos, oremos.
Entro na sala ainda a tempo de ver um trailer, let´s look at the trailer, de um filme que me apetece ver logo, e, depois, depois exactamente o que eu esperava. Uma grande senhora no ecrã. Uma rainha.
Saí do cinema e não fumei. Está um frio que não se pode com as mãos fora dos bolsos.

22.1.07

O cafezinho

Há um café pequenino na esquina da Torstrasse com a Friedrichstrasse e a Hannoversche Strasse e a Chausseestrasse, são quatro ruas que se cruzam, não se percebendo bem qual é que cruza com qual, por isso é que se chama um cruzamento, ó esperta, um café que de tão pequeno só lá cabem seis pessoas, três ao balcão da janela para ver os outros que passam e que nos olham a vê-los passar, três na parede com o espelho por onde a empregada nos olha curiosa e nós vemo-la a olhar para nós e ela sorri, sempre, e fora isto quem chega tem de pedir um café para levar para a rua ou voltar noutro dia.
Ganhei o hábito de cá vir uma vez por mês, dependendo duas, se calha a haver duas sextas em que depois do trabalho sei que não vou fazer mais nada. Não vou sair, quero eu dizer, ir para os copos, ao cinema, para casa de amigos, o que for, porque fazer até faço, faço sempre muita coisa, até no dia do senhor.

Para a semana a ver se nos encontramos noutro dia. Que dia? Sugiro qualquer dia, menos domingo. Porquê, o que fazes ao domingo sem ser encontrares-te comigo? Muita coisa, nem sabes tu o quê. E não podes fazer essa coisa toda ao sábado? Não, sábado é dia de fazer as coisas que têm de ser feitas na rua, domingo é dia de fazer as coisas que têm de ser feitas em casa. Então ao domingo não sais de casa? Não. Não vês ninguém? Eu não disse isso.

Mas se me perguntassem o que ia fazer na sexta-feira passada, eu responderia assim
- Nada.
como se não houvesse um verbo só para designar o acto de não sair numa sexta-feira à noite. Se calhar não há. Dá a sensação de ser uma coisa desdignificante, ficar em casa, não ter amigos, vegetar em frente da televisão condenada à futilidade das pessoas desinteressantes, e o pior é quando nem televisão se tem.
De qualquer maneira, às vezes não me importo. De não fazer nada. Gosto de começar por sair do trabalho às quatro, apanhar o S-Bahn, depois o eléctrico, entrar no cafezinho, pedir um café com espuma e uma fatia de tarte de queijo com passas, eu que não gosto nada de passas, só há três coisas que não como, fora as carnes todas que não sejam porco, galinha e pato, se me obrigarem também como borrego ou perú, mas só se for realmente necessário, fora isto tudo, uma das coisas que não como são passas. Por convicção. Por medo de cólicas. Por puro nojo. Seja o que for. Mas acabo por pedir sempre uma tarte de queijo com passas, porque o meu bolo alemão preferido é mesmo o bolo de queijo, e aqui não têm bolo, só tarte, e ainda por cima com passas. Geralmente ponho-as de lado, tiro-as uma por uma, escarafuncho o bolo todo, perdão, a tarte, mas no outro dia esqueci-me e comi-as todas.
Depois de me vir trazer o lanche à mesa, ao balcão, e de olhar sempre muito para mim e para o que já pus em cima da mesa, do balcão,
um livro; um caderno; uma caneta; um isqueiro; um maço de tabaco; um telemóvel;
e depois me sorrir, a empregada muito loira e/mas muito bonita, volta para trás do balcão dela e muda o cd que estava a tocar, qualquer coisa a que nunca presto muita atenção, creio que é esse que deve ser o objectivo da música num café que de tão pequeno só lá cabem seis pessoas, distrair quem trabalha, mas não incomodar os clientes, sempre um ou dois de cada vez, é por isso que gosto de lá ir, por isso e por causa do bolo, da tarte de queijo com passas, e eu que nem gosto nada de passas.
Invariavelmente, põe Johnny Cash. American. O I. Ou o II. Ou o III. Ou o IV. Qualquer dia pergunto-lhe se é por causa de mim, se tenho ar de quem ouve Johnny Cash, se calhar tenho, ou se é o ritual das cinco da tarde, da noite, das sextas-feiras, dos dias de chuva, da Berlim cinzenta. Ou então, se calhar, Johnny Cash é a maneira de dar as boas-vindas aos clientes habituais, os Stammgäste, como me chamaram no outro dia na galeria de vídeo, e eu não sei se isso é bom se é mau, mas acontece-me frequentemente no inverno alugar mais filmes do que aqueles que consigo ver e acabar por adormecer às horas de quem foi para a discoteca, mas com a vantagem de não me deitar a cheirar a tabaco e de saber que no sábado não vou acordar de ressaca. No domingo já é outra história. É por isso que ao domingo nunca gosto de sair de casa. Mas qualquer dia tenho de lhe perguntar. Se tenho ar de quem ouve Johnny Cash. Não é por nada. Curiosidade. Não, por acaso até oiço. Mas, pronto, é naquela.

Agora a sério, a ver se na próxima semana não nos encontramos ao domingo. Mas, se quiseres, eu vou ter à tua casa. Não. O quê? Não quero. Porquê? Não sejas chato. Pronto, está bem, então fica para sexta, se não fizeres nada. Eu faço sempre muita coisa. Eu sei, é uma maneira de dizer.

20.1.07

Sábado

Há dias em que trabalhar custa a sério.
Penso em todas as anedotas dos Alentejanos e sinto-me identificada.

19.1.07

O furacão

Não fiando, ontem não arejei a casa.

Desde que se soube, o mundo na quarta à noite, eu ontem de manhã, que um furacão com nome de criança árabe vinha por aí a alta velocidade, a cidade entrou em parafuso. Às 4 em ponto, hora prevista para a chegada da primeira aragem, começam a fechar as lojas, o governo aparece em conferências de imprensa e manda os funcionários públicos, alunos e estudantes para casa. Os profissionais liberais também podem fechar o estaminé mais cedo. Os que trabalham em instituições privadas são os que se lixam sempre.

Às quatro em ponto saio do trabalho, não porque me mandassem para casa mais cedo, mas porque é a minha hora normal de sair. Nem um minuto a menos, por isso também não a mais. Atravesso a praça e decido fechar o guarda-chuva antes de o abrir. Já o terceiro só este Inverno. Entro no café – o único aberto e vazio -, peço um galão e um pastel de nata e espero pelas 16:10. A senhora chega e avisa logo que não pode ficar muito tempo porque o vendaval não tarda nada está aí. Rio-me e chamo-lhe alarmista, alarmada (quando ela vai à casa-de-banho e não me ouve). Acho piada a esta gente. Furacões na Alemanha. Orkan. Orca. Uma baleia assassina que cai do céu e nos esmaga a todos.

Telefonaram-me do curso de ioga. Foi cancelado devido às condições climatéricas. Ainda discuto. Se me devolvem uma quarta parte da prestação mensal, tenho a toalha na mala e tenciono ir. Não devolvem. Tenta-se sempre.

Então e ele morreu de quê? De furacão. Morrer de furacão não é nada romântico. Morrer não é romântico. Só nos filmes. E a vida real assusta-se perante a possibilidade de ver o telhado fugir a meio da noite. Eu convenço-me de que estamos na Europa, de que essas coisas aqui não acontecem. Mas acabo por vir para casa. O país inteiro está a contagiar-me o medo.

Deixara a janela aberta. Por pouco não ficava sem ela. A brisa começou quando vinha de metro. Eram cinco horas e já o país inteiro estava em casa. Eu cá acho que não vai acontecer nenhuma calamidade. Acho que não aconteceu, mas ainda não li os jornais. Só tenho pena do senhor que levou com uma árvore em cima. Agora estou a falar a sério.

18.1.07

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Plano A.
Plano B.
Plano C.
Qualquer deles mete muito medo.
Mas não ter plano algum seria muito mais assustador.

17.1.07

28

Isto a culpa é todas dos turistas, de irmos para aqui apertados, que nem sardinhas em lata, acham piada à coisa, acham piada, mas quem se lixa é cá o zé povinho, mas a gente vai sorrindo, tem de ser, senão vão-se embora a dizer mal do país e a gente não quer nada disso, nunca se sabe se esta gente não nos pode salvar da crise, que isto anda mal, anda mal, ai menina, e depois são as cruzes que me doem e nem sequer tenho lugar para me sentar no eléctrico, de tão cheio que isto está sempe, raisparta esta gente.
Todos os dias isto. Para cima, para baixo, à hora do almoço, à hora do lanche, antes da hora do jantar numa tasca de Alfama. Os turistas confortáveis, os velhotes em pé, eu ali no meio deliciada com aquilo tudo, a tentar manter o equilíbrio e segurar bem o saco da Fnac, ó chefe não me leve as compras com a pressa, e a fazer o meu sorriso Pepsodent para a malta das máquinas fotográficas no Largo da Graça, na Sé, no Miradouro da santa tal, tantas são que nunca lhes sei os nomes, no Martinho da Arcada, no Chiado, é aqui que eu saio e ala que se faz tarde, a empurrar este e aquele, excuse me, excuse me, raisparta esta gente.
Calculo que tenha ficado, no mínimo, em 534 fotografias, mais uma ou outra que me escapou do campo de visão, e no das Cebolas também, que desta vez não pus lá os pés. Não lhes adivinhei a nacionalidade a todos, mas quem sabe se a minha bela figura não estará agora a rodar mãos de italianos, alemães, franceses, espanhóis, espanhóis então eram mais do que se podem aguentar mesmo em dias de festa, que até aí só um ou dois e o terceiro já está a mais, e esses europeus todos a pensar como Portugal é um sítio bonito, cheio de carinhas larocas e gente simpática. Há que fazer pelo contentamento da humanidade. Já que não podemos salvar os pobres da fome, então que satisfaçamos os outros e a sua ignorância de que a cultura de Portugal se aperta no eléctrico 28 que nem o atum General.
De cada vez que via alguém de máquina em riste, toca a sorrir, para aqui, para ali, tirar os óculos escuros à Martini Woman e fazer a pose mais sexy que o aperto me permitia. Somos bonitos, sim senhora, esta gaja aqui ao meu lado não, mas deve ser inglesa. É loira e cavalona, então e depois? Isso dos gajos preferirem as loiras nunca me entrou muito bem na cabeça. As ruivas ainda vá que não vá, mas como não há muitas ruivas abaixo do círculo polar ártico, nunca foram uma ameaça para ninguém. Agora as loiras é que não entendo. Por isso, toca a desmistificar a coisa e sorrir, sorrir muito. Pode ser que ainda nos calhe algum norueguês na rifa e nos leve para os meios dos fiordes. Que eles de loiras já devem estar fartinhos. E, enfim, é como tudo, que a gente faz o que pode. Se calhar daqui a uns meses aterra lá para os lados da Portela algum viking mascarado à procura da moçoila que fotografou a sorrir no eléctrico, tão bonita que ela era que se apaixonou imediatamente, e depois alguém lhe diga que a menina já não mora para aqueles lados, que em Portugal toda a gente se conhece pelo nome, e ele atravesse meia Europa e me descubra em Berlim, num dia daqueles em que não posso com uma gata pelo rabo e lhe diga assim, ó meu amigo, essa não sou eu, des-larga-me do pé que a minha vida não são cantigas. E é por causa destas e doutras que uma pessoa deixa passar as grandes oportunidades da vida. Mas, enfim, é a vida, minha senhora, é a vida, não se esqueça de ir a Fátima antes do ano acabar pedir pela prima Carolina que sofre de herpes e de desgostos de amor, se não fôssemos uns para os outros, não era ninguém por nós, então, vá lá, passe bem, e cuidado com o degrau, que acabou de chover e a calçada está escorregadia. Vá com deus, vá com quem quiser, o problema é seu, mas se encontrar um turista tresmalhado pelo caminho, diga-lhe que estou aqui e que lhe mando cumprimentos, que isto um sorriso ou outro hoje ainda se arranja, amanhã é que já não sei.

15.1.07

Telefonema

Vamos lá a esclarecer uma coisa. Até são três. Em primeiro lugar, não gosto que me telefones com o número oculto. Quando é assim, costumo hesitar sempre entre atender o telefone ou esperar pela mensagem. O problema é que toda a gente que me telefona tem o número oculto. As pessoas hoje em dia têm medo de se anunciar. Falta de auto-estima, é o que é. Pessoas com personalidade não têm medo de se fazer anunciar. Como eu. Até apareço nas Páginas Amarelas, vê lá. E depois levo com todos os senhores do telemarketing que até me lixo.
O meu mal é ser tão curiosa. Penso sempre que pode ser uma chamada importante, alguém que precisa de mim ou a sorte grande que me saiu. Mas o Euromilhões sai à sexta e num sábado à noite ninguém precisa de ninguém. Porque toda a gente já tem coisas combinadas, até eu. Mesmo assim acabo sempre por atender o telefone quando és tu. Burra, que ainda não aprendi a prever-te.
Em segundo lugar, não gosto que me telefones a horas impróprias. Qualquer hora antes das 11.59 da manhã é imprópria. As horas das refeições também são impróprias, mas as horas das refeições portuguesas, não as alemãs, que eu, quando ninguém está a ver, gosto de manter os meus hábitos originais. Odeio que me telefonem quando o comer está no prato. Nessas alturas os telefonemas duram sempre o tempo de a comida ficar fria. E depois fico azeda.
Last but not least, eu não gosto de fado. Já to disse várias vezes, mas parece que ainda não entendeste. Sou portuguesa, sim senhora, com muito gosto e orgulho não nacionalista, atenção, mas isso não quer dizer que goste de fado. Ou ainda não percebeste que nem todos os alemães gostam de Udo Juergens? Especialmente fado cantado por emigrantes que não põem o pé em Portugal há quinhentos anos mas sentem as saudades com a alma de ah, fadista! Se calhar é por isso que nunca vão a Portugal. Para cantarem melhor o fado. O que uma pessoa não faz por amor à arte, já viste?
Como tal, não gosto de Mariza nem de Mísia, nem dessas nem de todas as outras que vão tocar à Philarmonie com preços para alemão pagar e pensar que somos muito bons. Tão bons que exigimos 60 euros por um concerto em que a cantora faz playback. Ah, pois, ou não ouviste dizer? Então, afinal não foste? Ok, Cesária não é o teu estilo, só fado, né? Entendo. Ela também nem é portuguesa, o raio da velha.
De uma vez por todas, Fado ist nicht mein Ding. Não é a minha cena, bacana. Se tenho cds de fado em casa? Claro que tenho. Todos aqueles que tu me deste sem me perguntares se queria. Estão dentro da caixinha das coisas para deitar fora. Isso e todos os livros sobre o Algarve com edição de 82 que me ofereceste. Ouve, nos anos 80 eu ia ao Algarve passar férias com os meus pais todos os santos anos, na segunda quinzena de Julho que era para fugir à manada de Agosto. Quarteira, Armação de Pêra, Faro, Lagos, Albufeira, conheço isso tudo e sabes porque é que já lá não vou há tanto tempo? Porque da última vez que lá fui o empregado da marisqueira só falou connosco em espanhol, inglês, alemão, italiano ou francês, é à escolha do freguês. Somos uns poliglotas, não é bonito? É chato é termos este sotaque que nos denuncia entre irmãos, especialmente quando estamos no nosso próprio país e ouvimos um caramelo armar-se aos cágados. Mais valia pedirem a independência. A.U.A., Algarve United Army ou qualquer coisa do género. Também podiam começar a pôr bombas debaixo dos carros dos turistas para ver se a malta começava a visitar sítios mais para norte, a Pampilhosa da Serra ou assim. A.U.A., que é como os alemães dizem que lhes dói algo. Levar com uma bomba nas trombas deve doer, oh se deve. Era AUA por todos os lados.
Portanto, acho que ficamos assentes. Não há cá mais telefonemas ao domingo de manhã nem ao sábado à hora do jantar para me convidares para ir não sei a que café português ouvir fado roufenho. Não vais para casa da minha tia passar férias porque ela tem mais que fazer, eu nem falo com ela, mas tu nunca me perguntas nada sobre mim, basta-te saber que tenho no B.I.
Nacionalidade: Portuguesa
e ficas logo toda histérica. E nunca, mas mesmo nunca mais, me venhas declamar Pessoa ao telefone (especialmente aos domingos de manhã) nem dizer que és mais portuguesa do que eu. Tu nunca vais saber o que é nascer num Alentejo quente de casinhas brancas com velhas de luto refastelado à porta nas noites de Verão. E não, tu não falas bem português. Agora, se me desculpas, tenho de sair.

13.1.07

Arcade Fire


O estagiário que não conhecia Arcade Fire. Mas como é que tu não conheces Arcade Fire? Tu que ouves isto e isto e isto e gostas disto, daquilo e daqueloutro, não conheces Arcade Fire? Não pode ser. Apressei-me a ir pedir ao dj que fizesse o favor de encantar ouvidos que não sabem o que não andam a ouvir.
Quando começar a música, avisas-me? Claro que sim.
Juro que não foi por mal. Começou a música e eu esqueci-me de todos os propósitos daquela noite, fui para a pista de dança e chamei-lhe minha. Quando acabou, fui ter com ele e disse-lhe:
Aquilo, meu amigo, Aquilo era Arcade Fire.
Mas porque é que não me avisaste?
De qualquer maneira, se, quando começou a música, não paraste tudo o que estavas a fazer, se não calaste as conversas que estavas a ter, se não apagaste os cigarros que estavas a fumar, se não cuspiste a cerveja que estavas a beber, então, meu caro, não és digno de Arcade Fire. Resume-te à tua ignorância.

11.1.07

Os pensamentos do silêncio

Estávamos para ali sentados à espera do jantar e senti-o a olhar para mim. Estava só a olhar. Estava a olhar só. Só estava a olhar. Não estava a olhar para mim para me engatar, eu até já conheci a namorada dele, não era um olhar guloso, daqueles papava-te toda, esses olhares só me dão para duas coisas, ou deixo que me papem ou saio porta fora, também não era um olhar curioso. Era apenas um olhar.
Gostava de saber o que é que as pessoas pensam de mim quando se sentam à minha frente num restaurante de comida rápida de segunda categoria, o restaurante e a comida. Será que pensam nos meus olhos ou nas minhas mamas ou na minha inteligência duvidosa ou na sinceridade dos meus gestos ou em apenas como sou uma grande convencida por querer dar a entender que me estou a cagar para tudo quando, por vezes, nem sequer tenho conversa. Já não é a primeira vez que me dizem que sou uma gaja calada. É porque deve ser verdade. Eu costumo brincar com o facto de que não sou nada eloquente e que o silêncio é de ouro e a palavra de pechisbeque, mas acho que ninguém acredita em mim. Sou calada, porque sim. Porque isto de ser filha única havia de ter os seus reveses, foram tantas as vezes em que tive de brincar sozinha com a Barbie que às tantas o Ken nas mãos das outras miúdas ficava a parecer o Chico da Tasca.

A verdade é que eu penso muito. Quando me perguntam em que é que eu estou a pensar, respondo sempre, em nada. Às vezes é verdade. A maior parte das vezes não. Mas ou são pensamentos altamente escabrosos ou histórias da carochinha que não interessam nem aos reis magos. Abrir a boca nesses momentos seria o caminho ideal para pensarem que sou tontinha de todo.
Tinha um amigo, por onde andas tu, que, apesar de falar pelos cotovelos e pelas mãos e pelas unhas dos dedos mindinhos, adorava os meus silêncios. Achava-os altamente intelectuais, talvez por isso me tenha puxado um dia para um café em Kreuzberg e me tenha anunciado, assim, anunciado, que queria ir para a cama comigo. Quando me calei e fixei o olhar no copo de coca-cola à minha frente, já não me lembro se era dele, se era meu, não, era meu, ele assumiu o meu silêncio como um sim e eu não tive coragem de lhe dizer que na verdade, não era nem sim nem não, era qualquer coisa lá no meio que eu não sabia muito bem definir o quê. É claro que nunca lhe disse isto e o que se passou a seguir não interessa.
Sigo com a minha vida. Mesmo estando a chover.

Prefiro ficar calada e que os outros falem por mim. Já basta ter um trabalho em que me pagam para falar e para entreter e para ensinar aquilo que eu ainda vou fazendo melhor, enquanto eu, como ontem, que quase pagava para ficar calada, começo a pensar noutras coisas, como em sexo e no tempo, amanhã sem falta reservar a mesa para domingo, mas continuo a falar e a fazer perguntas, então, e tu, diz-me lá o que achas disto, e admirar-me com o facto de conseguir concentrar o cérebro em tarefas tão distintas e de ninguém dar por nada, ir à casa-de-banho respirar fundo e pensar que ainda já só faltam quase duas horas inteiras.

E estava eu ali, naquele restaurante cheio de correntes de ar, a bater o cigarro no cinzeiro, e aquele gajo de barbas a olhar para mim, sempre gostei de gajos barbudos, mas este não, este tem namorada e eu até já a conheci, e o gajo continua a olhar para mim e eu já não sei bem o que fazer sem ser continuar a chupar o cigarro e a batê-lo no cinzeiro como se disso dependesse a minha vida. Ia lá eu saber que isso me estava a matar lentamente. Até que chega a comida, eu fumo o cigarro até ao fim, digo-lhe que pode começar a comer, que eu não me preocupo nada com essas coisas, e finalmente começamos a falar de uma coisa que me interessa. E sobre a qual eu até sei umas coisinhas. E lá começo a debitar. Ele olha-me espantado e aqui deve estar a pensar, mas esta gaja até tem miolos. Não são muitos, os que tinha até há uns anos atrás já estão todos fritos que nem pescadinhas de rabo na boca, mas ainda vai dando para dar uma de gaja esperta. Lá continuamos a falar até que mudamos de assunto. O molho a escorrer-me da boca e eu a limpá-lo com a mão, feita javarda, e a pensar exactamente nisso, no molho e na minha javardice, devo ter os dentes cheios de coisinhas pretas, é melhor não me rir, olha que se foda, rio-me só para provar a mim própria que sou capaz, sou, e os meus dentes cheios de coisinhas pretas.

- Já não fumo disso há uma porrada de tempo.
- Deixaste de fumar, foi?
- Foi. Agora tornei-me alcoólica.
E ele esteve quase, quase a acreditar.
Dei-lhe uma palmadinha no braço, a minha mão gordurosa do molho, e disse-lhe:
- Não te preocupes. Eu sou tão normal que até mete nojo.

10.1.07

15 graus para hoje

Este ano eu até gostava que começasse a nevar. Para fazer de conta que o aquecimento global é apenas um produto da imaginação dos pessimistas.

8.1.07

Música 2006

Esta lista: uma linha (in)consciente do meu 2006.
Asterisco: os álbuns inteiros, dissecados, sem ainda me ter cansado, sinal de que nunca me vou cansar.
Conclusão: quando gosto, gosto.
Pergunta em alguns casos: mas só agora?
Resposta nestes casos: é verdade.

Arcade Fire: Cold Wind (OST Six Feet Under*)
Artic Monkeys: Red Light Indicates Doors Are Secured *
Bloc Party: Banquet *
Broken Social Scene: It´s All Gonna Break *
Clap Your Hands Say Yeah: The Skin Of My Yellow Country Teeth *
Gnarls Barkley: Just a Thought
Jeff Who?: The Golden Age *
Johnny Cash: Hurt
Kaiser Chiefs: Everyday I Love You Less
Kaizers Orchestra: Maestro *
Kubb: Wicked Soul
Micah P. Hinson: Close Your Eyes *
Patrick Wolf: The Libertine
Peter Björn and John: Up Against The Wall *
Placebo: Song To Say Goodbye
She Wants Revenge: Tear You Apart *
Sia: Breathe Me (OST Six Feet Under*)
Sigur Rós: Hoppípolla *
Silver Jews: Punks in The Beerlight
Röyksopp: What Else is There? *
The Editors: Blood *
The Kbc: Poisonous Emblem
The Killers: All These Things That I´ve Done *
The National: Baby, We´ll Be Fine
The Raconteurs: Steady As She Goes
The Spinto Band: Oh, Mandy
TV On The Radio: Wolf Like Me *


Mesmo, mesmo no fim do ano, descobri Beirut, I´m From Barcelona, Sparklehorse e The Kills. Mas temo que só lhes associarei o ano presente.

7.1.07

Boa notícia

A partir de 11 de Maio a easyJet vai começar a voar de Berlim para Lisboa. Finalmente. Voos directos. Incrível. Por um preço razoavelmente easyJeteano. Fantástico.
Não resisti. Se calhar não foi uma decisão muito acertada, já que Maio será mês de grandes decisões. Mas por 80 euros, ser impulsiva não custa.

(Não fique aí a dormir. O que é preciso é levar a coisa a peito.)

Cinema 2006

1 - Little Miss Sunshine (Johnathan Dayton & Valerie Faris)
2 - Me and You and Everyone We Know (Miranda July)
3 - Brokeback Mountain (Ang Lee)
4 - The Constant Gardener (Fernando Meirelles)
5 - Munich (Steven Spielberg)
6 - Walk The Line (James Mangold)
7 - Das Leben der Anderen (Florian Henckel von Donnersmarck)
8 - Miami Vice (Michael Mann)
9 - Match Point (Woody Allen)
10 - Marie-Antoinette (Sofia Coppola)
...
11 - Inside Man (Spike Lee)
12 - The Prestige (Christopher Nolan)
13 - Capote (Bennett Miller)

6.1.07

Curtas urbanas # 2

She Wants Revenge são as cinco da noite em Berlim.
Red Flags and Long Nights
Janeiro. O medo dos 19%. A Saturn faz descontos. Nur noch heute. Só hoje.
These Things
Alexander Platz. O eléctrico 6.
Out of Control
A mulher com cabelos de bêbada que grita para a criança ao lado. Halt die Klappe. Cala o bico.
Broken Promises For Broken Hearts
Os turcos à porta do supermercado. Concertos no bolso. Frio, mas não muito. Onde está a neve?
Us
Atravesso a praça. Suja, feia, escura, decadente.
Tear You Apart
Muito bom.

Demorar-me em mais explicações, era ser redundante.

José Luís Peixoto

“Perguntou se era ali que morava a minha mulher. Disse o nome da minha mulher. Disse o nome sólido, mas leve, branco, uma única forma branca; o nome impronunciável que existe, mas que é impossível, porque é um nome que significava antes de haver palavras, o primeiro nome, como um ponto no universo ainda vazio à espera de se encher com vida, ilusões, possibilidades.”

in Cemitério de Pianos

Saraband

Resoluções para o primeiro trimestre do ano: tratar de resolver as minhas falhas culturais. Comecei com Bergman. Em Fevereiro ataco os clássicos. Em Março espero estar preparada para o Ulisses. Não que haja alguma relação nesta sequência. Mas se isto continuar a correr tão bem como começou, qualquer dia ainda me torno numa gaja culta. Qualquer dia até deixo de dizer disparates.

4.1.07

Não percebo



Não percebo o fenómeno Eu, Carolina. Não percebo a mania de pôr o Pai Natal a trepar varandas, janelas, portadas. Não percebo o regresso do José Cid. Não percebo os cafés Kátequero. Não percebo as operações Stop. Não percebo os brincos argolas-de-circo. Não percebo a recente xenofobia aos chineses. Não percebo as árvores de Natal maiores da Europa. Não percebo a mania das grandezas. Não percebo os ordenados tão baixos. Não percebo os livros tão caros. Não percebo os livros tão caros. Não percebo os livros tão caros. Não percebo perguntas estúpidas começadas com então: então, já te levantaste?, então, já chegaste?, então, já comeste?, eu a lavar o prato (não percebo máquinas de lavar loiça), e a pedir baixinho, deixem-me em paz. Não percebo os gorros nas cabeças das pessoas numa noite com 12 graus positivos. Não percebo que me perguntem se na Alemanha faz mais frio, mas é claro que faz mais frio. Não percebo as casas frias, na Alemanha as casas são quentes. Não percebo os cães abandonados. Não percebo os gatos abandonados. Não percebo os velhos abandonados. Não percebo os almoços em família que se transformam em lanches que se transformam em jantares. Não percebo a minha família. Não percebo o luto das viúvas. Não percebo a galdeirice das viúvas sem luto. Não percebo as perguntas estúpidas da minha mãe começadas com então: então, quando é que me dás um neto? Qualquer dia. Qualquer dia ainda levas uma resposta torta e depois dizes que sou mal-criada. Não percebo que me digam que sou mal-criada. Não percebo as pessoas que falam ao telefone como se estivessem a morrer. Não percebo a palavra saudade associada a estas coisas todas. Não percebo a noção de cultura associada a estas coisas todas. Não percebo a minha cultura. Não percebo cultura. Sou uma inculta. Descultivada. Mesmo. Mesmo assim. Mesmo assim gosto que a velhota no eléctrico meta conversa comigo. Mesmo assim gosto de entrar num café em que as pessoas falam a gritar. Mesmo assim gosto de me sentar debaixo de um dia bonito de inverno como os gatos ao sol. Mesmo assim gosto de bacalhau com couves na véspera de Natal. Mesmo assim gosto de ler José Luís Peixoto e esquecer-me que há outras línguas no mundo. Mesmo assim gosto de outras perguntas começadas com então: então, estás boa? Cá vou indo.

3.1.07

Partida

Não sei se parta, se largue, se fuja.