31.12.06

Mensagem de final de ano

"Não fique aí a dormir."

in pacotes de açúcar Nicola.

Incógnito pós-modernista

She Wants Revenge, Morrissey, Arcade Fire, TV On The Radio, The Kills, Franz Ferdinand, The Killers, Rádio Macau, The Strokes, The Rapture, Pop del'Arte, Clap Your Hands Say Yeah, Kaiser Chiefs, The Cure, Nick Cave & The Bad Seeds, The Dandy Warhols, Goldfrapp, Pixies, We Are Scientists, Joy Division, LCD Soundsystem, Bloc Party, The Editors, The Smiths.

28.12.06

Family matters

desisto

25.12.06

Prendas de Natal

Um casal amigo, daqueles amigos que devíamos ter desde sempre, deu-me um exemplar ilustrado de “The Story of My Typewriter” de Paul Auster. Os saltinhos que eu dei de contente. Não foi a minha primeira prenda de Natal, a primeira foi ainda nem era Dezembro, mas é como se fosse. Isso a par de um objecto que não é para identificar para, cito, ardentes jogos sexuais, é daquelas prendas que os meus pais nunca me poderiam dar. A última que pela promiscuidade implícita, explícita, e os plícitos todos, nem se põe em questão, a primeira porque, infelizmente, e tenho de admitir algo que me provoca o mais profundo desgosto, os meus pais não fazem a mínima ideia do que é que eu gosto. Chega o Natal ou os anos, que só recebo prendas duas vezes por ano, há quem nunca tenha ouvido aquela expressão do Natal é quando o homem estiver para aí virado, e a minha mãe pede-me uma lista. Uma lista das coisas que eu quero, de que preciso, que me davam jeito, que ando danadinha por comprar, que enfim.
Eu lá lhe faço a lista, mando por e-mail, apesar de tudo a minha mãe é uma senhora informada, e já sei que daí a umas semanas tenho uma prenda que eu até sei qual vai ser, mas não vou dizer para não estragar a surpresa.
Ora a minha mãe que me fez, que me pariu, que me deu de mamar, que me aturou as birras, umas quantas bastante irritantes, se eu fosse a minha mãe tinha-me dado uns quantos pares de estalos jeitosos, que me criou e fez de mim a pessoa que sou hoje, obrigada mãe, se a minha mãe que isto tudo não é capaz de me surpreender com uma prenda porque tem medo que eu não goste, das duas uma. Ou eu sou uma pessoa muito difícil de agradar ou a minha mãe não tem qualquer ideia de quem é que pariu.

De qualquer maneira, as ilustrações do Sam Messer são deliciosas. O livro em si fica para ler com a calma que se tem quando se regressa. Quanto ao objecto do desejo, bom, esse terá de esperar pela noite.

21.12.06

Memórias de uma ausência III

Triologia



Pego no carro e vou para Lisboa. O meu pai ainda vem à porta ver-me partir, deve ter medo que me vá embora antes sequer de ter chegado. Ainda não cheguei, pai, deixa-me ver Lisboa primeiro. A gata também vem à porta, assoma-se ao portão e vira o focinho para o lado oposto. Má, és uma má. Eu? Tu é que te foste embora.
A A1 igual, cheia de ultrapassagens com pressa. Eu vou devagar no primeiro dia, quero ver tudo, os prédios altos, amarfanhados de classes médias, o lar de Betel para quem ainda gosta de dar nomes à esperança, o Tejo que me acompanha até Lisboa, as luzes da Cimpor à saída de Vila Franca, sempre quis parar aqui e tirar uma fotografia. E se virasse nesta saída? Não, afinal de contas Alhandra é tão feia.
No auto-rádio a compilação que trouxe de Berlim. Uma compilação em cassete, como antigamente, um antigamente ridiculamente recente. Avó, como estás? Ainda te lembras de mim? Tenho medo de te ir visitar. Juro que tenho. A minha mãe não entende, pensa que eu não te quero ver, e é verdade, não quero, mas é apenas por gostar muito de ti, tanto, e não te querer ver morrer. Nunca ninguém entende o sofrimento calado. Como o teu. As pessoas dizem-me sempre que devias morrer depressa, para não sofreres mais. Eu não consigo dizer isso. Avó, morre. Não morras. Merda.
Lisboa perto. Esta parte, esta circunvalação, mas o que raio é uma circunvalação, de qualquer maneira, este bocado aqui faz-me sempre lembrar qualquer coisa. Uma viagem que uma vez fiz, no meio de tantas outras iguais, mas esta, porra, esta tinha de ficar na memória, maldita memória selectiva que só funciona quando quer. Ainda me lembro da música que estava a ouvir. Depois disso ouvi-a tanta vez até me esquecer de me lembrar do que me lembrava o raio da música. Mas por muitas vezes que passe aqui nunca me hei-de esquecer. É por isso que Lisboa me dá tanto medo. Em Berlim é muito mais fácil esquecer. Berlim é grande. Lisboa não. Mas é tão bonita. Lisboa. Lis-boa. Lissabon. Li-s-boa. Digo-te o nome tantas vezes que me esqueço de ligar os piscas para o Campo Grande. Isso, apita, caralho. Esta gente não sabe ter bons modos.
O meu pai volta para casa, a gata atrapalha-lhe as pernas, fecha-se a porta. A luz de fora fica acesa para quando eu chegar. Eu chegarei muito tarde, mas ao menos vejo por onde passo. Já nunca me lembro que o raio da buganvília está no meio do caminho. O que raio é uma buganvília? De qualquer maneira, a luz dá jeito. Antes ainda tiro o saco do pão que alguém prendeu ao portão. Os meus pais moram no raio de um sítio onde alguém prende o pão aos portões das pessoas. Todas as pessoas na terra onde os meus pais moram têm casas com portões. Eu não gosto de casas com portões. Demora-se tanto tempo para se sentir que se saíu de casa. Demora-se tanto tempo para se chegar a Lisboa. Lis-boa. L-i-s-b-o-a. És tão bonita, Lisboa. E agora estaciono a porra do carro onde?

20.12.06

Memórias de uma ausência II

Triologia


A casa fria, apesar da lareira acesa. O meu pai atiça o fogo com a dedicação de um chefe de família. Nos entretantos senta-se, arranja a gata no colo, abre o Lobo Antunes numa página qualquer e lê. De óculos a branquearem-lhe o cabelo, eu já lhe disse que aqueles óculos o fazem mais velho, mas ele não quer saber. É um castiço o meu pai. Lê Lobo Antunes e diz que o entende. Eu mordo-me a inveja.
A minha mãe, na outra ponta do sofá, olha para a televisão de braços a apoiarem o cadeirão, dantes fazia renda, agora os olhos já não a deixam, os óculos também lhe branqueariam os cabelos se não os pintasse, porque é que os pais teimam sempre em deixar-se envelhecer? Eu, geralmente no meio, a desejar um sofá de três lugares só para mim. Já me desabituei de sofás, televisão, serões em família. Nos primeiros minutos aprecio o convívio, como quem não sabe que daí a nada já estou farta. Pego no comando, pergunto se posso ver o que está a dar num dos canais da TV Cabo, qualquer um.
O meu pai levanta os olhos do Lobo Antunes.
- Então e conta lá como te está a correr a vida.
- Eu quero ver a novela.
- A vida não corre, vai andando, ou nunca te disseram isso?
- Mas vai andando depressa ou devagar?
- Eu já te disse que quero ver a novela.
- Mãe, não sejas chata. Pois a vida vai andando conforme as minhas pernas deixam. Já tenho varizes, sabias.
- Pois, isto a idade não perdoa. Estás mesmo velha, tu.
Ri-se e volta a trocar-me pelo médico Antunes.
A minha mãe continua a queixar-se, não percebe que a novela é só uma desculpa para lhes deixar o sofá vago. Tens tanto tempo para ver a novela, porra.

No meu quarto, nada. Volto a abrir as portas do armário branco, pela segunda vez nesse dia, olho sempre para os meus livros muitas vezes no dia em que os reencontro. Já li estes livros todos. Será das coisas que tenho mais saudades do meu quarto. Ordenados por língua, aí estão os livros que eu não levei comigo. Porque gosto de os reencontrar. De vez em quando peço à minha mãe para ver se estão bem, os livros, no mesmo sítio, se já têm as folhas amarelecidas, não passou tanto tempo assim, filha.
No sótão há mais livros. Não meus, mas também costumo subir e ver como estão. A estes sim, o tempo coloriu-lhes as folhas. Eça, Austen, Dickens, Zweig. Não sei se os meus pais os leram alguma vez. Compraram-nos no Círculo de Leitores há muito tempo para mim, ainda eu não sabia que tinha nascido. Já mais crescida, quando pensava ser crescida o suficiente, ia para o sótão, a gata atrás de mim, enroscava-me no sofá ao lado da máquina de costura e punha-me a ler. Tudo. Qualquer coisa. Menos Austen. Não sei porquê. Até que a minha mãe viesse ralhar comigo. São horas de dormir.

Quando a novela acaba, a minha mãe chama-me. Agora não, tenho sono. Filha, nunca nos fazes companhia.

19.12.06

Memórias de uma ausência I

Triologia


Antes do jantar, passeio pela casa. Pelas bugigangas em cima das cómodas, os quadros de feira nas paredes, as fotografias das primas da França por cima da lareira. Nunca gostei delas, nem das primas, nem das fotografias. Agora já se casaram, este ano tiveram um filho. Uma ou outra, já não sei qual das duas me passou à frente, segundo a minha mãe, que isso a mim não me provoca desarranjos gástricos.
A casa dos meus pais está decorada como eu nunca a decoraria. Um amontoar de fotografias de crianças que hoje em dia já são adultos, de bebés que hoje em dia já têm acne, de casamentos que já se desfizeram, do meu avô que já morreu, de mim, de mim, de mim, ainda de mim com aquele fato de treino verde e amarelo, eu gostava tanto dele e a minha mãe nunca me soube dizer que era foleiro.
Ainda tenho a minha gaveta na cómoda do hall de entrada como a deixei, cheia de papéis que nunca mais voltei a ler, bilhetes que não sei se se podem ler, ali à mão de semear, eu sempre fui muito descuidada com os segredos que um dia iria esquecer. Dos outros não guardo nada que se possa encontrar. Pelo menos não à entrada de casa.
No cimo dos papéis, as chaves de casa e as do carro. Ainda o porta-chaves que trouxe de Berlim quando pensava não voltar mais. Olhava para ele e pensava
Berlim, Berlim
mas não sabia que um dia me iria fazer falta um porta-chaves de Lisboa para olhar para ele e pensar
Lisboa Lisboa
e não saber que voltar dói tanto.

17.12.06

Crónica de sábado à noite

A Müllerstrasse às 6 da manhã, Wedding cinzento escuro. Apressar o passo, fintar o amanhecer. Wedding vampiresco. Por outro lado, do outro lado, Prenzlauer Berg. Uma festa em casa de alguém que nenhum de nós conhece, mas na fila para a casa-de-banho dizemos que sim. Acabaríamos por conhecer o anfitrião mais tarde, Hallo, Jochen, erinnerst du dich an mich?
Nein, macht nichts.


Gente sentada no corredor, com licença, deixem passar, nós de cerveja de 70 cêntimos na mão, gente deitada no quarto de alguém, nós a falar alto no quarto de outro alguém, Pulp no gira-discos (vou lá perto para ver se é um gira-discos a sério, é), as roupas no roupeiro sem portas que vão cheirar muito mal a tabaco amanhã, fotos na parede, um ex-namorado, dois, uma viagem a terras vulcânicas que me parecem familiares (vou lá perto para ver se é, não é). Na sala dança-se. A casa é tão grande que por uns momentos pensamos que nos perdemos.

Depois de Placebo vamos para casa. Feliz Natal a todos.
Deixo-o ir, mesmo que ele de cabeça baixa, de roupas feias, de sapatos feios, de cachecol à homem, não lhe digo nada, as tuas roupas são tão desapropriadas, deixo-o ir. Desejos, não os meus, ficam à espera de um Ampelmännchen verde. Eu atravesso com o vermelho. Deixei de ter paciência para certas coisas.

No eléctrico oiço Arcade Fire. Ainda. É bom ouvir Arcade Fire no eléctrico. Seja onde for. É bom acabar um sábado assim.

15.12.06

Comboio rápido para Lisboa

O Sr. Pascal Mercier gostava de escrever como Pessoa, mas tem um sentido de humor pós-comédia-sentado-numa-cadeira-estofada. O Sr. Pascal Mercier é um senhor filósofo de cabelos grisalhos com um talento nulo para a música mas que gostava de ter um piano em casa. O Sr. Pascal Mercier veio a Berlim (ou mora em Berlim?) falar do seu livro Comboio Nocturno para Lisboa, ou lá como é que traduziram isto para português, mas acabou por infiltrar no seu discurso umas quantas dicas sobre a arte de escrever, as quais eu terei de anotar noutro dia, que isto de excitação já chega por hoje. O Sr. Pascal Mercier é um gajo fixe e, apesar de eu já ter lido o livro mas não ter um exemplar meu para autografar, e mesmo que tivesse, conseguiu arrancar-me da embriaguez de um malfadado dia de trabalho em que o lema foi “Senhor não deixes que ninguém me odeie tanto como eu odeio a minha chefe” e dar-me a paz de espírito que eu precisava para vir para casa às 10 da noite de uma sexta-feira, vestir um pijama ao cansaço, jantar coisas que não se jantam e ir dormir como os bebés, ou fazer de conta que durmo como os bebés, que amanhã, apesar de ser sábado, o trabalho vai livrar-me da tentação de gastar o pouco dinheiro que ainda me resta em prendas para os outros. Obrigada, Senhor!

Estive mesmo para não ir, assim num vai não vai de auto-comiseração pela minha fraca miséria, que nem essa consegue ser grande, e só me decidi porque acabei inesperadamente um livro a meio da viagem para casa,

um livro não se começa nem se acaba de ler no meio do S-Bahn, é como daquelas coisas intímas que só se fazem de porta fechada

enrolei o terço ao pulso e arrastei-me até à Rote Rathaus com a promessa de que sairia imediatamente a seguir aos últimos aplausos (promessa esta que quase tomou forma de uma viagem a Fátima após ter ouvido “Queridos amigos de Portugal” três vezes no discurso introdutório da Associação Luso-Alemã, ter olhado ao meu redor e só ter visto carecas e cabelos brancos) para vir para casa inspirada por quem sabe mais do que eu. É só pena que esteja tão cansada que parece que o fim-de-semana ainda tarda 8 dias para chegar.
Senhor, protege-me do tempo que falta.
Ámen.

14.12.06

Snooze ou 9 minutos de descanso



Com o Natal vem mais trabalho, quem diz que é tempo de reflexão, não percebe nada disto. Jesus, que até era judeu, é que não fazia a ponta, dormitando no berço rodeado de ruminantes. Na era do consumo, o Natal não é mais do que um lufa-lufa de festas para organizar, festas para ir, 1500 cartões de Natal para mandar aos clientes, encontrar um restaurante que ainda não esteja lotado para o jantar que a chefe oferece aos que se portaram bem durante o ano, fazer horas extra que nunca são suficientes, mercados de Natal nem vê-los, a luz do sol muito menos, desfazer-me em amabilidades natalícias, ir à Hauptbahnhof num instantinho ver a árvore de Natal e, no meio disto tudo, ainda pensar nas prendas de Natal que só comprarei no dia 22.

Deito-me todas as noites à espera da manhã seguinte. Carrego no snooze com prazer masoquista. Nove minutos depois o dia de hoje é igual ao de ontem, ao de amanhã. O calendário diz que só tenho de aguentar até à semana que vem.

11.12.06

Bad girls

Cinco mulheres à volta da fogueira debatem intimidade, sexo oral, os homens latinos para a cama e os escandinavos para a vida. Um devaneio sobre um certo tipo de fome e alguém que remata a conversa cedo demais para os homens presentes. Cuando hay hambre, hay hambre.
Eles riem-se. Elas não.

10.12.06

Kreuzberg 61

Chegar às 9 da manhã, lembrar-me ainda de tirar as calças de ganga antes de cair na cama. Acordar já de noite, não saber bem que dia é e, de repente, fazer rewind e lembrar-me.


A festa tinha acabado melhor do que pensávamos. Lembro-me de sairmos para a rua às 6 da manhã, cada um com uma garrafa de vinho escondida na mala, parece que descemos à arrecadação e roubámos as últimas garrafas, faz de conta que as bebemos nós. Só me lembro de me terem passado uma garrafa para a mão e de me terem dito, leva-a para casa, tu mereces. Sem medirmos as consequências dos nossos actos, segunda-feira alguém se dará conta de que faltam garrafas, não quero nem pensar nisso, fechámos a porta (será que a fechámos?) e partimos para Berlim. Quantos seríamos, uns 9, talvez 11. Lembro-me que a conta era ímpar, a conta embriagada é sempre ímpar.
Àquela hora já as ruas estavam vazias, os bares fechados, Berlim que nos trancava as portas temporariamente. Só mais uma rua, vamos tentar, alguma coisa há-de estar aberta. Perguntávamos a este ou àquele que virava as cadeiras de pernas para o ar num bar qualquer se sabia onde havia alguma coisa aberta. Na última tentativa, um porteiro apontou para o outro lado da rua, ali por baixo do toldo amarelo, estão a ver.
Atravessámos a estrada sem respeitar os sinais, alguém se tresmalhou com um aceno de mão furtivo, ficámos apenas 7 ou 9, nos outros dois não iríamos pensar mais, certamente que continuariam a festa de outra maneira.
Entrámos, a medo. Uma cave escura, homens ao balcão de canecas na mão e sotaque cerrado. Numa mesa ao canto despejámos os nossos haveres, tirámos dois euros cada um para uma cerveja, houve quem pedisse whisky, a noite ainda agora começava. A empregada, de dedos enfeitados com anéis e olhos a transbordar ironia, mais bêbada do que nós, fez-me esperar 10 minutos por uma cerveja cheia de espuma. Dá-me lá isso, quero beber. És das duras, tu, és cá das minhas. E abraçou-me do outro lado do balcão. Seria o primeiro de muitos abraços nas duas horas que se seguiriam. A mim, aos outros, a todos.
O dj, um travesti que despertou apostas entre nós, será homem, será mulher, olha para as mãos, dizia eu, são mãos de homem, mas tem peitos, são mãos de homem. Tens Joy Division? Não, eu só passo heavy e metal. Então põe Type O Negative, pelos bons velhos tempos. És das duras tu, és cá das minhas. Pouco mais tarde, passou Blur, pelos bons novos tempos, afinal não passava só heavy e com a Song 2 só não deitámos o palco abaixo porque mais baixo que aquilo não podíamos descer.
Perto das oito, alguém me pediu em inglês para ir ver da A. que já estava na casa-de-banho há muito tempo, será que se estava a sentir bem. A A. é das duras, mas eu vou lá ver.
Afinal tratava-se apenas do cinto que não queria fechar. Na altura em que eu, de joelhos a tentar apertar-lhe o cinto, a dizer, não consigo, estou tão bêbada que vejo três fivelas e não sei qual delas é a verdadeira, entrou um gajo na casa-de-banho, estás enganado, aqui só entram mulheres, eu de joelhos a mexer-lhe nas calças, imagino o que ele terá pensado, mas não era nada disso, e fechei-lhe a porta na cara. Nunca cheguei a conseguir acertar na fivela verdadeira.

Lá fora já era dia claro, se é que se pode falar de dia claro no Dezembro que corre. Despedimo-nos dos anfitriões, o dj travesti abraçou-me e confessou-me que nunca ninguém lhe tinha pedido Type O Negative, o público que costumo ter é muito diferente, voltam? Eu prometi-lhe que voltava. Voltaremos sempre enquanto Berlim nos continuar a surpreender assim. Antes de entrarmos no metro ainda me lembro de lhes dizer, segunda-feira serei uma pessoa respeitável, esqueçam tudo o que ouviram sair da minha boca hoje. Não te preocupes, serás sempre uma pessoa respeitável desde que os teus actos venham do coração. Foi piroso, mas não fez mal. Não creio que amanhã alguém se lembre de que, durante umas horas, enfiámos a respeitabilidade num saco que pusémos debaixo do banco.
Agora, que penso nisso, acho que ainda lá deve estar.

7.12.06

Little Miss Sunshine

Eu não escrevo sobre filmes. Não escrevo, porque não sei. Contento-me em ir ao cinema e no fim dizer se gostei ou não. Deixo as críticas para quem gosta de esmiuçar um filme, de comparar este com o resto da obra do realizador, o trabalho deste ou daquele actor, a forma de filmar e todas as outras coisas que não vou chamar pelo nome próprio porque simplesmente não estou para isso. Não que não saiba, mas porque agora não me apetece.
Da única vez que tive de escrever sobre um filme foram logo três. Podia ter-me ficado por um, mas não. A ganância, ora bem, resultou na ingestão de uns litros consideráveis de vinho tinto num espaço reduzido de tempo. Estive no limiar da loucura, no limbo do alcoolismo, já estava a ver-me a perder o emprego, a ser despejada e a ter de ir para o metro vender a Motz. Felizmente corrigi-me a tempo e decidi almejar apenas um piroso mediano com estilo. Não um piroso mediano só, mas um piroso mediano com estilo. Toda a gente ficou satisfeita e hoje em dia só bebo em sociedade.

No entanto, e arriscando-me a ter uma recaída, já que tenho sempre uma vinhaça de reserva, podia começar por dizer como quis ver o filme logo assim que vi a apresentação, nesse Verão longínquo. Achei especialmente piada à cena em que o pai diz à família:
- Façam de conta que são normais.
Esteve bem. É daquelas coisas que também eu gostava de ter podido dizer à minha família no Natal de 2002 (com margem de erro de um ano) em que ia começar tudo à porrada, o meu tio pega na garrafa de licor Beirão, eleva-a no ar em direcção ao meu outro tio, que toda a gente teima em dizer que é meu padrinho, mas eu não me lembro de ele alguma vez me ter dado uma prenda de jeito, no exacto momento em que apareceu a vizinha da rua de trás, a Dona Ermelinda, se não me falha a memória, de bigode nas beiças como era seu costume, e:
-Ó prima, venha daí que o padre já subiu o morro.
Foi constrangedor. No mínimo. Bastante. Eu consegui escapar ilesa, não voou nenhum objecto não identificado por cima da minha cabeça, dois Natais depois já era uma pessoa normal outra vez, mas a minha avó é que, depois desta palhaçada toda, acabou por não ir à missa do Galo. Para o ano há mais, avó! Ai os meus filhos que me desgraçam! Para o ano há mais, avó! Ai minha rica vida! Mas o que é que vossemecê quer com um padre gay? Deixe lá a missa. E na semana seguinte houve conversa suficiente para tecer camisolas de lã para a vizinhança toda do bairro. Não pela homossexualidade do padre que isso fui eu que inventei agora mesmo. Adiante.

Pois este filme é sobre famílias. A minha família, a tua família, uma família qualquer que não se assemelhe a uma mera coincidência. Exagero para aqui, exagero para ali, e às tantas já a carrinha entra no jogo e faz das dela em plena auto-estrada. E foi aqui que eu me ri a sério. Ri-me tanto que juro que chorei. E já quando toda a gente se tinha acalmado mas a carrinha continuava a buzinar, com uma elegância que só ela, eu continuava a rir-me a rir-me a rir-me até que alguém me acotovelou a alegria e eu lá tive de tapar o riso com a vergonha. Pois é, eu acho piada a estas coisas.

De modos que, este filme não é daquelas comédias românticas da treta que forçam a piada, mas nem conseguem disfarçar a falta dela. Este filme é uma comédia-qualquer-coisa que tenta disfarçar a piada com uma humildade graciosa. E podia acabar por dizer que uma Olive de calções e botas vermelhas à cáubóia parece mesmo a abelha Maia. Mas deixo as críticas a sério para quem de direito. Eu cá gostei muito.

6.12.06

Nikolaus

A minha prenda do Nikolaus foi um ordenado novo e... perneta.

5.12.06

Do Natal

O verdadeiro espírito de Natal está nas gruas enfeitadas com luzinhas no leste de Berlim. A visão das mesmas pode deixar-nos com um sorriso nos lábios, mesmo que a vontade de comprar as prendas este ano ainda seja praticamente nula e se vá resumir, com a redonda certeza dos zeros na conta, ao estrita e penosamente essencial.

3.12.06

Lugar de passagem

Acabou a noite a ver o filme e a recordar os diálogos que tiveram depois de irem para casa, não se lembrava se estava a chover se não, é que podia ser importante. Se estava a chover, deixava-a à porta de casa, ia estacionar o carro e voltava a correr, com o casaco sobre a cabeça, entrava no prédio, subia os degraus dois a dois, fechava a porta e dizia
- Está um tempo de merda!
atirando o casaco para cima do sofá. O casaco molhado.
Faziam amor, nem sempre logo a seguir, isso dependia da urgência da paixão, com o coração na alma e as mãos dela pelo corpo dele e as mãos dele pelo corpo dela e tudo o resto era nada. Por vezes, antes ainda viam um pouco de televisão, um programa pior do que a merda do tempo, comiam qualquer coisa ou bebiam um copo de vinho. Depois do telefonema da mãe
- Sim, já cheguei, está tudo bem. Agora vou dormir.
outros tempos em que a mãe sabia mas fingia sempre que não sabia e ia, ela sim, dormir, com a mesma preocupação com que tinha acordado,
talvez fumassem um charro, houve uma altura em que fumavam muitos, ela precisava de se rir, ele nunca lhe perguntou porquê.
No dia depois deste filme tiveram uma conversa especial, mas depois de tantos anos a tentar esquecer, ela já não se conseguia lembrar sobre o quê. Talvez tenha sido o dia em que ele lhe pediu que nunca o abandonasse, abraçado a ela como se ela fosse saltar do varandim, deixa-te estar, não te vás embora, preciso de ti, foi isto que lhe disse, preciso de ti, ela riu-se e respondeu
- Mas estás parvo?
com a descontracção de quem queria disfarçar o medo que fosse ao contrário, que fosse ele a abandoná-la a ela. Como aconteceu, um dia do nada, como acontece do nada tudo o que deixa nódoas na carpete. Nesse dia ela chorou como choram as crianças, mas aqui ela ainda não sabia disso, que seria ele a abandoná-la pouco depois, num tempo ridiculamente curto para se mudar de opinião, e abraçou-o, dizendo-lhe
- Gosto tanto de ti.
Ou talvez tenha sido o dia em que ele lhe disse que haviam de ficar juntos para sempre. Para sempre, como se falasse sério, como dizia todas as coisas quando as dizia a sério, a determinação de quem pensava saber o futuro lido de graça.
Ou talvez não tenha sido nada disto. Talvez tenha sido uma conversa banal, sobre o filme e a banda sonora, que ela compraria pouco depois e ele gravaria ainda muito depois, havia qualquer coisa entre eles que os impedia de gostar das mesmas coisas ao mesmo tempo.
Alguns anos depois, depois desta história ter acabado, recomeçado, acabado uma segunda vez, e no meio muitos outros sub-plots que só causam fastio a quem se lembra deles, ela compraria o dvd, mas não o veria logo. Guardá-lo-ia no meio dos outros dvds, como se guardam as coisas que se destinam à banalidade, e só o veria no dia a seguir a ter contado a sua vida a uma desconhecida. É o que vale nesta cidade, em que as pessoas que se encontram estão sempre de chegada ou de partida. Um desconhecido, de bagagem aviada, já se terá esquecido da conversa logo a seguir às primeiras frases.
Depois de ver o filme, ouviu a banda sonora. Bebeu um copo de vinho, dois, fumou um cigarro, dois. E depois de todos os demónios terem saído, levantou-se.


De cabelo atrás das orelhas, uma mão a agarrar a garrafa de cerveja e a outra a pedir-me um cigarro, contou-me isto porque pensava que eu o iria esquecer. Tinhamo-nos acabado de conhecer, talvez tivessem passado uns trinta minutos de conversa iniciática
- A tua cara não me é estranha, se calhar já nos encontrámos antes?
- Há quem esqueça os encontros que só mais tarde fazem sentido, mas desta vez não creio ser o caso.
sentámo-nos longe dos outros e ela começou a contar-me, já não me lembro porquê, se calhar começo mesmo a esquecer quando, neste momento, ela já deve estar a fazer as malas, eu só farei as minhas daqui a algumas semanas, não para partir de vez, ainda não.
Mas eu não esqueci tudo. Não se esquece a história da vida dos outros quando é tão estupidamente parecida com a nossa. Cheguei a casa, tarde e com os membros torpes da cerveja, o trajecto desta vez mais curto, a música em repeat só tocou cinco vezes, sempre a mesma música desde há uns dias, e acabei a noite a ver um certo filme. Talvez não o mesmo, certamente outro. Talvez na história desta minha desconhecida não tenha entrado um filme, havia sim, os mesmos demónios, de capa vermelha e cornos afiados, os caninos saídos para fora, o babete salivado de maldade insolente, de malas e bagagens, prontos a fazer sala. Convidei-os a sentarem-se, ofereci-lhes café, que quem trabalha não deve beber. Disse-lhes que podiam estar o tempo que fosse preciso, o que tem de ser tem muita força e há coisas que é melhor serem o mais depressa possível, mas eu sabia que não iriam tardar muito. Em Berlim, que é uma cidade de passagem, nem o diabo fica muito tempo. Bebi um copo de vinho, dois, fumei um cigarro, dois. E, depois de todos os demónios terem saído, fui-me deitar.